Mentem, e a CPI nem aí
PEDRO DORIA
O general Eduardo Pazuello desferiu o mais grave ataque contra a democracia brasileira desde o início da CPI da Covid. Um ataque que não foi suficientemente apontado. E um ataque que tem por cúmplice involuntário o presidente da comissão, senador Omar Aziz (PSD-AM). Não há gente suficiente percebendo a gravidade da naturalização da mentira que está ocorrendo ao longo destes depoimentos e de que a CPI é cúmplice. Não estão percebendo que é abrir mão da verdade no debate público que faz corroer a democracia.
O primeiro a mentir foi o ex-secretário de Comunicação Fabio Wajngarten. Afirmou que nada tinha a ver com uma campanha desferida sob seu comando contra a política de isolamento social. O relator, Renan Calheiros (MDB-AL), quis prendê-lo em flagrante. Aziz não topou — e a decisão é dele. Aí o ex-chanceler Ernesto Araújo negou ter atacado a China. Há tuítes, artigos assinados, vídeos. Não importa. Fez na cara dura, escondeu-se atrás da máscara e simplesmente mentiu.
Nunca havia se mentido numa CPI de forma tão descarada, com provas do contrário a um Google de distância. E é por isso que o depoimento do ex-ministro da Saúde é muito mais grave do que o dos outros. Wajngarten e Araújo mentiram fingindo falar a verdade. Pazuello não. Ao dizer que jamais recebeu ordens para não comprar vacinas do Instituto Butantan, foi confrontado com o vídeo em que afirmou “um manda, o outro obedece” perante justamente essa ordem. Dada pelo presidente da República, Jair Bolsonaro. Pazuello não titubeou: “é coisa de internet”, feita por “agente político”.
Ou seja, na lógica torta do ministro, o presidente mente para seus eleitores e fãs, e isso é normal. Pazuello não fingiu que a mentira era verdade. Pazuello chamou a mentira de mentira e falou que é assim que se faz política.
Talvez seja essa a impressão que os generais tenham de políticos. Que seu trabalho é mentir. Se for, estão errados. O trabalho dos políticos é trazer à mesa as diversas correntes de opinião presentes numa sociedade e negociar as diferenças. Sim, sempre houve mentiras. Mas, quando pegos em mentiras, políticos sofriam consequências.
Quem estuda o assunto vem usando um termo — truth decay. Decaimento da verdade. Em química, decaimento é o lento processo pelo qual o núcleo instável de um elemento perde energia por radiação. Em biologia, é o igualmente lento apodrecimento de um corpo pela ação de bactérias ou fungos. A palavra está em voga nas Ciências Humanas. Decaimento da verdade é quando lentamente uma sociedade deixa de ligar para a verdade, para o consenso a respeito de um conjunto básico de fatos.
Decaimento democrático é o que vivemos quando há decaimento da verdade.
Jair Bolsonaro mente. É sua prática corriqueira. Seus eleitores sabem disso — apenas não ligam. Para eles, é até engraçado. Mas, para que a mentira se estabelecesse a ponto de ameaçar a democracia, ela precisou antes ir lentamente se esgueirando até se legitimar. Naquela campanha dura, agressiva e canalha que foi a da eleição presidencial de 2014, Dilma Rousseff tirou Marina Silva do segundo turno com publicidade de TV que mentia. Escancaradamente. Agora, Ciro Gomes, candidato à Presidência em 2022, contratou o marqueteiro que produziu aquilo para ajudá-lo a chegar ao Planalto.
Políticos estão legitimando a mentira.
Alguém precisa fazer algum gesto. O gesto é a prisão de quem mentir sob juramento escancaradamente dentro do Congresso Nacional. Sem um gesto grande, estamos entregues ao apodrecimento da democracia, acelerado pelas redes sociais. É preciso ação. O decaimento lento da verdade está em suas fases finais.