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    segunda-feira, abril 05, 2021

    Entre a cruz e a lei, Nunes prefere a morte

     

    Thiago Amparo

    Direito é como um castelo de cartas, onde as peças (os argumentos) empilham-se delicadamente; sem isso, o castelo todo cai por terra. É o que acontece com a decisão do ministro Kassio Nunes, do STF (Supremo Tribunal Federal), pela liberação de celebrações religiosas presenciais na pandemia. Que fique claro: o ministro desafia a hermenêutica e a paciência jurídicas ao tentar, sem sucesso, empilhar de forma desconexa argumentos que, juntos, não convencem e, sozinhos, estão errados.

    A primeira carta malposta é quem apresenta a ação. Nunes concedeu a medida cautelar pleiteada em uma ação diretamente proposta no Tribunal pela Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure), ação tecnicamente chamada de ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental). Qual o problema? Anajure não pode apresentar uma ADPF ao STF. Quem disse isso? O próprio STF, com aceite de Nunes, em outro caso de fevereiro de 2021.

    Naquele caso (ADPF 703), o Tribunal, em voto do ministro Alexandre de Moraes, decidiu por unanimidade que a Anajure não cumpria com os requisitos para ingressar com uma ação direta no STF, na qualidade de “confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional”, como manda a Constituição e a lei. Nas palavras do STF, Anajure congrega “associados não vinculados a uma única e homogênea categoria profissional ou econômica”, logo ilegítima para propor a ação.

    No caso decidido neste sábado (3), Nunes tenta dar uma cartada em si mesmo: o ministro do STF diz praticar “distinguishing” —um termo técnico, aqui mal empregado, para dizer que o precedente anterior do STF não se aplicaria por ser distinto do caso atual. Primeiro, isso não faz sentido porque o caso decidido neste domingo versa sobre exatamente o mesmo tema do caso rejeitado pelo STF há um mês, a saber: questionamento de medidas municipais que restringem aglomerações religiosas em razão do agravamento da pandemia.

    Em segundo lugar, Nunes pratica dois pesos, duas medidas: mesmo se considerarmos que a recente jurisprudência do STF tem flexibilizado as regras para se apresentar um caso direto ao Tribunal, o mesmo ministro preferiu rejeitar, no último 23 de fevereiro, a possibilidade da confederação nacional de quilombolas (Conaq) de usar do mesmo instrumento legal da ADPF, na ocasião para proteger comunidades quilombolas contra a Covid-19.

    Outra carta malposta no castelo de argumentos de Nunes é sua visão sobre como lidar com conflitos de direitos fundamentais —de um lado, a liberdade de culto e, de outro, a vida e a saúde. Aqui, a técnica jurídica de Nunes é sofrível. “Proibir pura e simplesmente o exercício de qualquer prática religiosa viola a razoabilidade e a proporcionalidade”, escreve o ministro. Razoabilidade (adequação entre os meios empregados pelos municípios, o isolamento social, e o fim almejado, a diminuição das mortes) é diferente, tecnicamente, da regra de proporcionalidade, essa mais ampla.

    Kassio Nunes teria que explicar, ademais, por que liberar cultos no auge da pandemia seria a solução, entre outras igualmente eficazes para garantir a liberdade religiosa, que menos violaria a vida e a saúde de todos. Tampouco o ministro nos explica por que pedir para que se pratique, temporariamente, a religião em casa viola tanto a liberdade religiosa quanto as mortes sem ar na pandemia violam o direito à vida. Esses questionamentos fazem parte da proporcionalidade que o ministro se propõe a fazer e não faz.

    Praticar a fé em casa respeita tanto a sua religião quanto a vida e saúde dos outros. Entre a cruz que diz proteger e a lei que deve servir, Nunes não respeita nem um nem outro. Seus argumentos, já dizia Jesus, “por fora parecem formosos, mas por dentro estão cheios de cadáveres.” Se quisermos falar com Deus, é no amor pela vida que O encontraremos, não entre quatro paredes.

     

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