Preferimos insuflar uma guerra civil a combater a desigualdade que o racismo sustenta
BERNARDO CARVALHO
Durante muito tempo achei que o Brasil fosse a cópia escarrada do Sul dos Estados Unidos, sem a Guerra de Secessão ou antes dela. Aqui se defende o indefensável. Preferimos insuflar uma guerra civil a combater a desigualdade e abrir mão de privilégios que o racismo sustenta. Com o estranho agravante de que aqui os negros são maioria.
Durante muito tempo identifiquei o Brasil com o anacronismo dos estados sulistas confederados. Somos capazes de eleger um presidente e um governo que trabalham abertamente contra os direitos civis, a diversidade e as ações afirmativas, para dizer as coisas em termos eufemísticos e publicáveis. Os confederados daqui estão no poder.
Gente que sabe que, na prática, matar negros é crime inimputável, se não direito garantido por “excludentes de ilicitude”. Ou já saberíamos quem mandou matar Marielle Franco.
Os anos Trump deixaram claro, para quem ainda não tinha entendido, que a Guerra de Secessão não acabou. E que não há anacronismo nenhum. Os confederados lutaram para manter a escravidão. E o motivo da guerra continua a assombrar e dividir o país.
É a tese de Michael Gorra em “The Saddest Words” (as palavras mais tristes, ed. Liveright, 2020), sobre William Faulkner e a Guerra Civil americana. Não faltariam motivos para quem hoje quisesse cancelar o maior romancista americano do século 20 com base em suas declarações infames, incoerentes e nem sempre sóbrias.
Além de alguns dos romances mais geniais da história da literatura de todos os tempos, Faulkner também foi autor de cartas e frases que atestam posições contraditórias e muitas vezes indefensáveis sobre negros e a escravidão, a exemplo de quando equiparou supremacistas brancos à Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor, como duas formas igualmente condenáveis de extremismo (vimos algo semelhante por aqui, recentemente, e conhecemos as consequências).
Nem por isso o escritor deixou de receber ameaças de morte por parte de seus conterrâneos brancos. Os romances são a chave. E é pelos romances que Michael Gorra o defende.
O problema de muita gente disposta a cancelar o autor de uma frase é a incapacidade de ler o parágrafo inteiro, para não dizer o livro. Gorra nos explica como funciona a literatura e por que Faulkner é o autor indicado para quem quer entender o fantasma do racismo nos Estados Unidos.
Seus romances são a expressão da Guerra Civil incorporada por uma subjetividade atormentada pelo estigma da raça (que pode até não ser visível, mas está no sangue), pela miscigenação, pelo estupro e pelo incesto.
Faulkner condenava a escravidão sem poder desvencilhar-se do mundo que ela criou, que é o mundo de seus livros, onde a honra é também ignomínia. Cancelá-lo só nos torna ainda mais cegos e vulneráveis ao que desejamos combater, ao que não podemos suportar no presente.
Quando, nos anos 1950, Faulkner pediu calma (“go slow”) aos advogados do processo de dessegregação do Sul dos Estados Unidos, o destemido James Baldwin não hesitou em denunciar a desonestidade da proposta depois de mais de 200 anos de escravidão e 90 de semiliberdade para os negros. “Eles nunca admitiram seriamente a insanidade de sua estrutura social”, Baldwin retrucou, definindo por tabela a tragédia dos personagens de Faulkner.
A “palavra mais triste” é o verbo reiteradamente conjugado no passado. É a fantasia acintosa de “E o Vento Levou”. O que Faulkner dramatiza, ao contrário, é a consciência inexorável dessa impostura e dessa violência, a fantasmagoria de um mundo obsceno, convertido em negação repetida, idealização de um paraíso perdido, ruína e mito.
O passado com o qual toda uma sociedade se recusa a acertar as contas volta como maldição, trauma de um fracasso reincidente, o indefensável enterrado em cova rasa.
Não é preciso nenhuma pirueta intelectual para entender que, no Brasil, é à negação perpetrada pelos que já não tinham caráter nem coragem para assumir suas responsabilidades no passado, e aos quais agora faltam dignidade e competência para assumir suas responsabilidades no presente, que melhor corresponde a farsa de homogeneidade à qual os espectros de Faulkner tentam se agarrar, em vão, contra a força da modernidade e as evidências históricas.
Temos no Brasil uma legião de confederados escarrados, insepultos, lutando por uma fantasia de atraso, agarrados ao poder pela mentira. Faulkner é uma força da modernidade irrompendo das entranhas do racismo. Seus livros são uma enorme pedra de contradição no caminho dessa gente.