Da maxambeta ao 'gaslighting'
O discurso de Jair Bolsonaro na abertura da Assembleia Geral da ONU foi, bem espremido, uma bela coleção de potocas, quimeras e maxambetas (ao dicionário, pessoal).
Como ocorre muitas vezes, trouxe desavisadamente em si sua autocrítica mais feroz. Ao acusar o mundo de mover uma “campanha brutal de desinformação”, Bolsonaro poderia estar se dirigindo ao espelho.
Não há sinal da tal “cristofobia” no Brasil. Não são índios e caboclos que queimam a floresta. O auxílio emergencial passa longe de US$ 1.000. O investimento estrangeiro está em queda e não em alta. Por seus atos e omissões, o governo federal jamais poderá lavar as mãos pelos 140 mil mortos da pandemia. Etc.
Lidar com a falsidade é complicado por causa do grande número de formas e papéis que a patranha é capaz de assumir. A mentira pode até ter pernas curtas (embora a política mundial pareça empenhada em aposentar o ditado), mas se multiplica em mil caras.
Há a meia verdade, a balela verossímil, a invenção implausível mas conveniente, a mitomania descabelada, a poetagem na qual o próprio mentiroso chega a acreditar.
Há a omissão providencial, a desconversa, o drible, a areia nos olhos, a supostamente respeitável “narrativa”. Há a mentira bem intencionada e há a mentira maliciosa.
Há até a mentira ululante, a suprema cara de pau do cônjuge apanhado no ato da traição: “Este aqui não sou eu, cáspite!”. Parece mentira, mas há relatos de que, pronunciada com a devida ênfase, a frase já colou.
Uma mentira pode ser até mesmo uma verdade irretocável. “Você ainda me ama?”, pergunta a milionária ao marido canalha que lhe deu o golpe do baú. Resposta: “Tanto quanto em nossa lua de mel”.
Peço perdão pelo tom de melodrama que se infiltrou na coluna, mas dos meandros da mentira muitos romancistas já extraíram grandes comédias e tragédias.
Exatamente por não se tratar de matéria simples, é tarefa primordial da imprensa fincar balizas sólidas no pântano de meias verdades e lorotas inteiras que compõe o cenário político no tempo da pós-verdade e das redes sociais.
Diante de uma exibição tão acabada de descompromisso com os fatos como a do discurso de Bolsonaro na ONU, será sempre possível destacar a motivação do personagem.
Não está errado dizer que o presidente se defendeu, como optaram por fazer em suas primeiras páginas de ontem tanto a Folha quanto O Globo.
Do ponto de vista da saúde da linguagem, sem a qual jamais nos entenderemos, o problema com fórmulas do gênero é que elas deixam de trazer para o primeiro plano a denúncia do caráter essencialmente falacioso da “defesa”. E ele muda tudo.
Ah, mas o Exército vibrou com o discurso? Pelo menos um terço da população está pronto a engolir a pseudologia fantástica inteira? Lamenta-se, mas isso não muda em nada a situação.
A inverdade não é “polêmica” (sim, o adjetivo maldito voltou a aparecer, associado às afirmações de Bolsonaro). Mentiras não deixam de ser mentiras quando alguém acredita nelas —tornam-se apenas mais perigosas.
Entre as muitas formas de manipulação baseadas na impostura, uma das mais atuais é aquela que se chama em inglês de gaslighting.
Está na Wikipedia: “forma de abuso psicológico no qual informações são distorcidas, seletivamente omitidas para favorecer o abusador ou simplesmente inventadas com a intenção de fazer a vítima duvidar de sua própria memória, percepção e sanidade”.