O carioca e o misterioso distanciamento social
O Rio de Janeiro é o melhor lugar do mundo e o carioca, a melhor pessoa.
Esclarecido isso — xô, haters — vamos ao mote da coluna: o carioca, infelizmente, também tem uns defeitinhos. Coisa pouca, nada demais, detalhezinhos que não atrapalham em nada. O daltonismo, por exemplo, que o faz confundir o verde e o vermelho. É o motivo pelo qual ele encara todas as cores do sinal como um plácido e complacente incentivo a seguir em frente. Nem podemos considerar um defeito, é uma característica, um estilo, um modo de vida. Essa irrelevante má-interpretação dos sinais de trânsito causa um monte de acidentes, mas o que é isso perto de um bloco animado no sábado de carnaval ou o Arpoador em dia de sol? Nada!
A pandemia me fez descobrir outra falhazinha de fábrica: o carioca é incapaz de compreender o conceito de distanciamento social. Mais precisamente, ele não entende o significado de um metro e meio. Talvez seja algum tipo muito específico de dislexia, onde os cento e cinquenta centímetros se misturam na cabeça de tal maneira que ele perde a noção de distância e, mais ainda, o amor à vida.
Quem precisou sair à rua já sentiu o problema: você está andando numa calçada larga e vazia e lá vem o carioca, tranquilo, despreocupado, pensando no próximo carnaval — um otimista, acima de tudo — na praia e nos bares, todos liberados por nosso probo governador e pelo divino prefeito. Você automaticamente vai para o lado direito, para passar o mais longe possível do nosso simpático cidadão. O que ele faz? Vem também pela direita — a sua, não a dele — e passa colado em você. De boas, sem nenhuma má intenção. É a dislexia carioca funcionando, a embaralhar as distâncias e transformar o metro e meio em centímetro e meio, tipo Cordão do Bola Preta no sábado de carnaval ou Dias Ferreira no último sábado à noite. Uma alegria só. A Covid nem precisa pular, é só dar um passo pro lado e já está na próxima vítima. No supermercado, o metro e meio na fila do caixa também é sânscrito para o carioca: mesmo que você respeite a distância à frente, logo vai ter alguém fungando no seu cangote, tentando entender por qual razão misteriosa você não faz o mesmo com o cliente à sua frente. Se adianta aí, mermão!
Outro probleminha nativo, além da dislexia do metro e meio, é a amnésia seletiva, que faz o carioca reciclar, involuntariamente, sabedoria singular do motoboy vidaloka, aquele que apenas apoiava o capacete na cabeça para “enganar” o guarda. O tal capacete era arremessado longe no primeiro toque de outro veículo, enquanto o seu dono fazia o mesmo, mas em outra direção, a do hospital. Na versão pandêmica é a máscara que fica pendurada em uma orelha ou no queixo, deixando nariz e boca livres para espalhar a infecção e — numa versão homicida da filosofia suicida do vidaloka — levar os outros para o hospital.
Para não ser — ainda mais — chato paro por aqui a lista de defeitinhos irrelevantes. Não faz diferença, quem se importa? O que vale é que daqui a pouco já é verão e teremos tudo liberado: praia, bares, muvuca e carnaval.
Para quem ainda estiver vivo, é claro.