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    segunda-feira, fevereiro 24, 2020

    A MANGUEIRA NA AVENIDA E NA TV: NOVAS CRUCIFICAÇÕES



    Dermeval Netto

    Um enredo de carnaval tem um conceito e uma proposta estética. A partir dele, as cores volumes e formas, fantasias, alegorias, conjuntos. O visual de uma escola que passa não traduz beleza apenas em brilhos e luzes de led. A cor negra da fantasia da bateria da Mangueira foi ousada, dando imagem e tom à imensa escuridão de que fala o samba.

    Não foi fria a escola nem o desfile. Sua transmissão sim, no mínimo suspeita, capciosa, fria, desinteressada, em tom de desprezo, abordagem reta e sem curvas, incapaz de penetrar nas camadas mais profundas, de mostrar os significados da criação de um carnaval e enredo crítico, bem elaborado.


    A arquibancada e sua empolgação, não podemos avaliar pelo que foi mostrado, e tenho dúvidas sobre esse termômetro e sobre a forma que o público expressa sua emoção ou entusiasmo.


    Talvez estivéssemos também com uma expectativa muito alta sobre esse desfile, muito divulgado, e muito imaginado o espetáculo que se produziria. É fatal quando isso acontece, e recebemos com a tendência para uma certa decepção, abaixo do nível de expectativa. 


    O desfile da Mangueira apresentou lances extraordinários, os vários Jesus, as diversas crucificações, suas várias faces, seus vários tempos na história, a rainha de bateria como personagem de enredo, como a/o Jesus mulher em passos de representaçâo dramática, absolutamente diferenciado, inovador. A favela como lugar da ressurreição. 


    Na encenação da comissão de frente, a "dura" da polícia carioca em Jesus e seus apóstolos, mereceu do comentarista e ex-carnavalesco Milton Cunha, a prosaica explicação de que aquela era "a polícia de Roma". Já nos indicavam e antecipavam ali, a Globo e seus comentaristas amestrados, como seria a forma de contar, driblar e evitar aquele enredo. A imagem do rosto do menino crivado de balas, representando a matança de crianças e jovens negros, as frases "favela pega a visão, não tem futuro sem partilha nem messias de arma na mão", não mereceram nenhum comentário. Entre incompetente e tendenciosa, a marca, o dna da emissora.


    A Mangueira foi linda, inteira, intensa e profunda, num enredo bem criado e bem desenvolvido, trazendo e incorporando Jesus nas mazelas e nos perseguidos do nosso tempo. Trouxe uma leitura social e política da vida de Cristo, com uma estética refinada, sua atualização no mundo real do buraco quente, das fendas e frestas da vida real dos oprimidos.


    A Globo se esquivou, se desviou, se amedontrou, esfriou, desprezou, andou de lado, cumprindo seu papel de sempre, o de recortar e ocultar o que não lhe interessa.


    Mas, em samba, política e futebol, vale a emoção e o afeto de cada um, o que se vê, percebe, espera e sente. E o choro é livre.


    Mas a TV define um modo de narrar, é preciso estar atento.


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