Fragmentos de textos e imagens catadas nesta tela, capturadas desta web, varridas de jornais, revistas, livros, sons, filtradas pelos olhos e ouvidos e escorrendo pelos dedos para serem derramadas sobre as teclas... e viverem eterna e instanta neamente num logradouro digital.
Desagua douro de pensa mentos.
segunda-feira, novembro 28, 2016
Até onde La Vue alcança
Dorrit Harazim
Ou Michel Temer não sabia o risco que corria ao nomear Geddel, e isso já seria grave. Ou sabia, o que é pior
Barack Obama
pode não ter fechado a prisão de Guantánamo, como prometia sua primeira
canetada oficial em janeiro de 2009. Tampouco diminuiu os poderes da
Agencia Nacional de Segurança (NSA, na sigla em inglês) em bisbilhotar a
vida do cidadão americano — ao contrário, eles foram consolidados desde
que assumiu o poder.
Contudo, o 44º presidente dos Estados Unidos
pode se orgulhar de algo que nenhum de seus antecessores na Casa
Branca, nenhum estadista moderno da Europa, e muito menos do Brasil,
conseguiu fazer constar do currículo: um mandato sem escândalo no
primeiro escalão e nos quatro mil nomeados federais.
O caso de
Obama, duplamente excepcional pois serão dois mandatos ficha-limpa, tem
uma explicação elementar. A fórmula partiu do topo, foi comunicada ainda
antes da posse, e era inequívoca: nenhuma ambiguidade será tolerada.
Durante
a fase de transição entre o desmonte do governo George W. Bush e a
instalação da nova equipe na Casa Branca, os postulantes aos cargos de
confiança receberam um questionário de sete páginas e 63 tópicos.
As
perguntas, de natureza pessoal e profissional, retroativas a uma década
e extensivas a consortes e filhos adultos, eram tão abrangentes que
muitos candidatos chegaram a contratar advogados para respondê-las sem
falhas. Outros desistiram de disputar os cobiçados postos por intuírem
que as oportunidades imaginadas não haveriam de se materializar.
Segundo
conta Obama, seu conselheiro jurídico Greg Craig, autor das regras que
passariam a valer, gostava de resumir assim a nova ordem: “Tudo o que
soa tentador, melhor esquecer. É proibido”. Dias atrás, durante a
entrevista de encerramento do Fórum da Apec (Cooperação Econômica
Ásia-Pacifico), realizada em Lima, o presidente relembrou aqueles
primórdios quando indagado sobre o que recomendaria a Donald Trump para
evitar possíveis conflitos de interesses. Respondeu obliquamente, mas
disse tudo:
“Não basta cumprir a lei apenas pelo que nela está
escrito — é preciso ir além, e praticar também o que faz parte do
espírito da lei”, respondeu. Como se sabe, a legislação americana não
proíbe presidentes de tocarem negócios e comandarem simultaneamente o
país. Apenas jamais ocorreu. Um chefe de Estado só não pode receber
pagamentos de governos estrangeiros. No caso de Trump, as chances de
pipocarem conflitos com o bilionário que tem negócios em mais de 30
países e mora na Casa Branca passam a existir.
Obama, ao assumir,
transferiu todos os seus ativos para o Tesouro americano, que, como ele
bem sabia, não lhe renderiam exatamente uma fortuna. “Mas simplificou
minha vida”, explicou. “Deixei de me preocupar com as complexidades de
uma decisão que, se tivesse sido outra, poderia ter me beneficiado
inadvertidamente”.
Até hoje fala-se do tal questionário de 2008,
que exigia, entre outros, cópias de e-mails, postagens em blogs ou
páginas de Facebook que pudessem vir a causar constrangimento ao
presidente eleito. Também solicitava o fornecimento de inúmeras listas,
como a de todos os nomes, apelidos, identidades usados pelo postulante
para se comunicar na internet, multas de qualquer natureza de valor
superior a US$ 50, negócios e empresas onde o candidato ou consorte
tinham mais de 5% de participação.
O escrutínio sobre lisura
fiscal, atividade financeira, conexões com lobistas, atividades
público-privadas, palestras remuneradas, presentes recebidos fora do
círculo pessoal era retroativo a uma década. E para a eventualidade de
algo ter escapulido do crivo, o fraseado da última pergunta era
intencionalmente amplo: “Pedimos acrescentar qualquer outra informação a
seu respeito, ou de algum membro de sua família, que possa sugerir
algum conflito de interesse”.
A meta para Obama era evitar
surpresas, em caso de contratação. Saber o risco que estava disposto a
correr. Quando nomeou Hillary Clinton como secretária de Estado, apesar
da tentacular fundação que leva o nome da família, assumiu o risco com
os dados em mãos.
No caso de Geddel Vieira Lima, das duas uma. Ou o
presidente Michel Temer não sabia o risco que corria ao nomeá-lo
ministro-chefe da Secretaria de Governo, e isso já seria grave. Ou
sabia, o que é pior. Nos dois casos, quanto mais desobstruída fica a
vista por trás dos tapumes político-privados do edifício La Vue de
Salvador, menos tolerável ela se torna para um país de bolso vazio e
paciência esgotada.
As declarações iniciais de autoridades que
concentram o poder em Brasília, visando mitigar a acusação do
ex-ministro da Cultura Marcelo Calero de ser vítima de pressão para
liberar o espigão da Bahia, merecem ser relidas. Algumas são ardilosas,
outras, primitivas, a maioria, indecentes. Todas têm em comum a má-fé
somada à convicção (ou esperança) de conseguir enganar o país.
“A
política tem dessas coisas”... É preciso “construir uma saída” para
resolver “dificuldades operacionais do gabinete.” (Michel Temer,
presidente da República)
“O episódio tem dois lados, e essa
polêmica tem muita espuma”. “Esse Calero enlouqueceu.” (Rodrigo Maia,
presidente da Câmara dos Deputados)
“Acho que esse é um fato superado. Parece que houve uma interpretação indevida.” (Renan Calheiros, presidente do Senado Federal)
“Este
assunto está na Bahia há muito tempo”. “Isso termina gerando
insegurança política para quem comprou unidades, gerando desemprego na
cidade.” (Geddel Vieira Lima, comprador da unidade do 23º andar) O Iphan
embargou a construção acima do 13º andar. “Vou deixar o cargo por
isso?” Vai sim, ministro. Aliás, já deixou.
Seis meses de governo Temer, seis demissões escandalosas. Oito anos de governo Obama, zero escândalo. O exemplo vem de cima.