Fragmentos de textos e imagens catadas nesta tela, capturadas desta web, varridas de jornais, revistas, livros, sons, filtradas pelos olhos e ouvidos e escorrendo pelos dedos para serem derramadas sobre as teclas... e viverem eterna e instanta neamente num logradouro digital.
Desagua douro de pensa mentos.
Galvão Bueno tendo um ataque apoplético após o jogo da seleção
brasileira é comparável ao General Custer indignado com o genocídio de
índios norte-americanos. Galvão, afinal, que foi em outros tempos ótimo
narrador, é um ícone, com suas patacoadas histéricas de arauto do Brasil
grande, do processo mais amplo de destruição da seleção masculina de
futebol. A obra dessa destruição é complexa, coisa de morte matada com
mais de oitenta tiros e uma cacetada de assassinos. E digo logo que é
uma morte dupla, já que a seleção dos homens morreu também no campo do
simbólico. Eu acuso...
1- A bandidagem burlesca da CBF, uma
corporação mafiosa, como a FIFA, o COI, o COB e outras instituições que
viram no esporte uma grande lavanderia para seus empreendimentos
escusos.
2- A transformação do jogador de futebol em celebridade
pop de ocasião, com decisiva colaboração da mídia: a turma, antes de
pensar em jogar bola, quer entrar em campo com gel no cabelo,
sobrancelha feita, suvaco depilado, brinco de ouro e outros
salamaleques. Nem vou falar das cinquenta e tantas tatuagens de metade
da seleção brasileira e dos cortes de cabelo geométricos que exigem
manutenção diária (eu não veria nenhum problema nisso, se a construção
da imagem não viesse acompanhada de uma infantilização/normatização do
corpo estimulada pela indústria das celebridades).
3- A morte dos
estádios, virados em arenas multiuso, com bistrô, loja de conveniência,
espaço gourmet e outras babaquices, numa pegada totalmente desvinculada
da cultura do futebol que desenvolvemos na América do Sul.. O estádio
era um espaço de formação do torcedor. A arena não é.
4- A
profanação das camisas dos clubes com propagandas de cursos de inglês,
bancos, funerárias, produtos de limpeza, organismos internacionais de
combate à fome ou coisa que o valha. Vejo aí, na transformação dos
"mantos sagrados" em outdoor, um sinal de que a própria ideia de clube
como instituição de pertencimento do torcedor anda morrendo também.
5- A limitação dos nossos técnicos, que agora se arvoram a dizer que se
reciclaram depois de passar uma mísera semana fazendo estágio no
Barcelona.
6- O baixo nível de parte da imprensa esportiva, jabazeira e bajuladora.
7- A morte da rua e da várzea como espaços cotidianos da pratica do
futebol e de sociabilidade da garotada, agora obrigada, se quiser
brincar de jogar bola, a se inscrever nas escolinhas de clubes, lugar em
que geralmente o lúdico perde espaço para a adequação do corpo e a
domesticação do talento.
8- A linguagem moderninha dos narradores
e comentaristas, aqueles que chamam o craque de "atleta diferenciado",
passe pro gol de assistência (deslumbrados com a NBA), reserva de peça
de reposição e coisas do gênero.
9- A quebra do vínculo simbólico que unía a seleção ao torcedor e passava pelo clube;
10- A "barcelonização" da torcida infantil, refletida nas crianças
brasileiras que andam se declarando torcedoras de clubes europeus, em
alguma medida porque os laços simbólicos que citei acima foram
quebrados.
11- A incapacidade do comando do futebol pensar nestes
laços simbólicos, enfrentando o desafio colocado pela globalização para
o esporte, um fenômeno que por um lado amplia possibilidades e por
outro gera a uniformização dos padrões culturais, inibindo a produção de
novos conhecimentos e técnicas, tanto no plano coletivo como no
individual. Isso claramente se reflete até na perda de algumas
características do nosso modo de jogar bola e torcer. Lidamos com essa
demanda de forma autofágica, jogando a água da banheira fora com a
criança dentro, em um processo que, a médio prazo, vai destruir clubes
pequenos e médios (já destrói) e restringir o futebol brasileiro apenas
aos clubes que tiverem o maior número de clientes consumidores do jogo
(essa nova entidade que está surgindo no lugar dos torcedores).
Eu poderia citar diversas outras coisas, mas o mais dramático, a meu
ver, é esse embaralhamento de causas e efeitos e da morte dupla do
canarinho: no campo de jogo e no campo simbólico das paixões, afetos e
empatias. A seleção brasileira de futebol masculino pode até ganhar a
medalha olímpica e eventualmente fazer bom papel em Copa do Mundo, mas
morreu. A camisa amarela, que já foi manto sagrado de vestir cavalo de
santo, hoje é mesmo uma mortalha que veste, mais do que um time , um
país que está indo pelo mesmo caminho do seu futebol. Ou seria o
inverso?