Fragmentos de textos e imagens catadas nesta tela, capturadas desta web, varridas de jornais, revistas, livros, sons, filtradas pelos olhos e ouvidos e escorrendo pelos dedos para serem derramadas sobre as teclas... e viverem eterna e instanta neamente num logradouro digital.
Desagua douro de pensa mentos.
segunda-feira, junho 27, 2016
A abertura ilustre para a entrevista do ilustre CHICO BUARQUE. Escrita por Vinicius de Moraes
Este é o sensacional texto de abertura que VINICIUS DE MORAES
escreveu para a primeira entrevista de CHICO BUARQUE para o jornal O
Pasquim.
Meu compadre Chico Buarque ou dos prazeres e vantagens de ficar pobre.
Estou aqui na cobertura do meu bom e velho Braga, o cavaleiro do
Atlântico, em gozo de justas férias pascoalinas, ouvindo César Franck na
Rádio Ministério da Educação e saboreando um gin-tônica sazonado com
uma rodela de limão da horta-suspensa do bravo capitão, por estas horas
perlustrando as rotas do Itatiaia em seu Corcel novo, do azul chamado
"diplomático".
Só desvio o olhar da Olivetti lettera 32 para
conferir o tráfego intenso dos beija-flores voando parado diante das
garrafinhas de água açucarada pendentes do toldo do terraço, a qual
sugam através do cálice de pequenas margaridas de engodo. Sobre o banco
da amurada, fechado em sua gaiola, o canarinho amarelo assiste
cabisbaixo duas rolinhas comerem-lhe o alpiste, metendo as cabecinhas
entre as grades. Ainda há pouco uma delas entalou-se na operação, e não
houve nada a fazer senão sair do meu conforto e ir libertá-la com muito
jeito, para que não quebrasse o pescocinho. Ela aquietou-se um minuto em
minha mão antes de recobrar vôo e eu juro que me senti, com perdão da
modéstia, um verdadeiro São Francisco de Assis.
No fundo do
horizonte vejo as ilhas de Ipanema, uma das quais tem um nome que merece
asterisco. Seis pisos abaixo de mim dorme ainda, a destilar no sono o
Buchanan's da véspera, e certamente sonhando em bloco, esse poço de
cultura e conhecimento que se chama Paulo Francis - conforme constatei
pelo telefone com sua mucama.
Preferiria muito não estar fazendo
nada, mas esses rapazes d'O PASQUIM, o Tarso especialmente, já se vêm
tornando maçantes com a insistência para que eu contribua com o lirismo
do meu verbo, para o aumento de tiragem deste jornaleco. Como voltei a
ficar pobre, e estou precisando pagar minha conta no Antonio's, resolvi
aceder. Pediu-me o Tarso, muito aflito, que apresentasse a entrevista de
meu também pobre compadre Chico Buarque, vítima atual n. 1 dos chacais
do jornalismo e da televisão. Vá lá que seja. O Tarso chegou mesmo a
propor-me, de olho súplice, um aumento de salário avant-la-lettre, que
eu naturalmente aceitei, considerado o fato de que minha atual situação
financeira está mais para fezes que para mousse de chocolate.
Estou considerando seriamente a possibilidade de optar definitivamente
pela pobreza, bem como, antecipando-me à era do matriarcado que se
anuncia, e à qual o Tarso e eu damos o nosso completo apoio, trocar meu
sobrenome pelo da mulher amada e passar a chamar-me, doravante, Vinícius
Rezende de Deus, pois filho de Deus sempre fui, e dos mais aquinhoados
por sua infinita bondade. De fato, depois que voltei a ficar
pobre, nunca a sua divina mão agiu com maior misericórdia. Por isso que
estou, como diria o Caetaninho, sem lenço e sem documento, a divina
providência soprou no ouvido dos amigos que me são mais caros que não me
deixassem ficar sem teto e alimento, e assim é que essa querida Tônia
Carrero, certamente uma das mulheres mais belas (por dentro e por fora)
do século, abriu-me as portas do apartamentinho de seu filho Cecil
Thiré, onde no momento assisto, e meu velho amigo Rubem Braga
escancarou-me a passagem marítima de sua bela cobertura para esses dias
de meditação e ócio não remunerado.
Não estou querendo insinuar
nada, mas como o tradicional orgulho dos Moraes não me permite, na
presente circunstância, aceitar donativos em dinheiro, permito-me
sugerir que qualquer gesto de altruísmo seja manifestado em caixas, ou
mesmo unidades, de uísque escocês, de preferência com rótulo de
importação, e das marcas Buchanan's, Old Rarity, Black Label ou Chivas
Regal, que poderão ser enviadas à redação deste, como diria a outro,
hebdomadário.
Muito bom!!