A abertura ilustre para a entrevista do ilustre CHICO BUARQUE. Escrita por Vinicius de Moraes
Este é o sensacional texto de abertura que VINICIUS DE MORAES escreveu para a primeira entrevista de CHICO BUARQUE para o jornal O Pasquim.
Meu compadre Chico Buarque ou dos prazeres e vantagens de ficar pobre.
Estou aqui na cobertura do meu bom e velho Braga, o cavaleiro do
Atlântico, em gozo de justas férias pascoalinas, ouvindo César Franck na
Rádio Ministério da Educação e saboreando um gin-tônica sazonado com
uma rodela de limão da horta-suspensa do bravo capitão, por estas horas
perlustrando as rotas do Itatiaia em seu Corcel novo, do azul chamado
"diplomático".
Só desvio o olhar da Olivetti lettera 32 para conferir o tráfego intenso dos beija-flores voando parado diante das garrafinhas de água açucarada pendentes do toldo do terraço, a qual sugam através do cálice de pequenas margaridas de engodo. Sobre o banco da amurada, fechado em sua gaiola, o canarinho amarelo assiste cabisbaixo duas rolinhas comerem-lhe o alpiste, metendo as cabecinhas entre as grades. Ainda há pouco uma delas entalou-se na operação, e não houve nada a fazer senão sair do meu conforto e ir libertá-la com muito jeito, para que não quebrasse o pescocinho. Ela aquietou-se um minuto em minha mão antes de recobrar vôo e eu juro que me senti, com perdão da modéstia, um verdadeiro São Francisco de Assis.
No fundo do horizonte vejo as ilhas de Ipanema, uma das quais tem um nome que merece asterisco. Seis pisos abaixo de mim dorme ainda, a destilar no sono o Buchanan's da véspera, e certamente sonhando em bloco, esse poço de cultura e conhecimento que se chama Paulo Francis - conforme constatei pelo telefone com sua mucama.
Preferiria muito não estar fazendo nada, mas esses rapazes d'O PASQUIM, o Tarso especialmente, já se vêm tornando maçantes com a insistência para que eu contribua com o lirismo do meu verbo, para o aumento de tiragem deste jornaleco. Como voltei a ficar pobre, e estou precisando pagar minha conta no Antonio's, resolvi aceder. Pediu-me o Tarso, muito aflito, que apresentasse a entrevista de meu também pobre compadre Chico Buarque, vítima atual n. 1 dos chacais do jornalismo e da televisão. Vá lá que seja. O Tarso chegou mesmo a propor-me, de olho súplice, um aumento de salário avant-la-lettre, que eu naturalmente aceitei, considerado o fato de que minha atual situação financeira está mais para fezes que para mousse de chocolate.
Estou considerando seriamente a possibilidade de optar definitivamente pela pobreza, bem como, antecipando-me à era do matriarcado que se anuncia, e à qual o Tarso e eu damos o nosso completo apoio, trocar meu sobrenome pelo da mulher amada e passar a chamar-me, doravante, Vinícius Rezende de Deus, pois filho de Deus sempre fui, e dos mais aquinhoados por sua infinita bondade.
De fato, depois que voltei a ficar pobre, nunca a sua divina mão agiu com maior misericórdia. Por isso que estou, como diria o Caetaninho, sem lenço e sem documento, a divina providência soprou no ouvido dos amigos que me são mais caros que não me deixassem ficar sem teto e alimento, e assim é que essa querida Tônia Carrero, certamente uma das mulheres mais belas (por dentro e por fora) do século, abriu-me as portas do apartamentinho de seu filho Cecil Thiré, onde no momento assisto, e meu velho amigo Rubem Braga escancarou-me a passagem marítima de sua bela cobertura para esses dias de meditação e ócio não remunerado.
Não estou querendo insinuar nada, mas como o tradicional orgulho dos Moraes não me permite, na presente circunstância, aceitar donativos em dinheiro, permito-me sugerir que qualquer gesto de altruísmo seja manifestado em caixas, ou mesmo unidades, de uísque escocês, de preferência com rótulo de importação, e das marcas Buchanan's, Old Rarity, Black Label ou Chivas Regal, que poderão ser enviadas à redação deste, como diria a outro, hebdomadário.
É agora, dá-lhe, Chico!
VINICIUS DE MORAES
Só desvio o olhar da Olivetti lettera 32 para conferir o tráfego intenso dos beija-flores voando parado diante das garrafinhas de água açucarada pendentes do toldo do terraço, a qual sugam através do cálice de pequenas margaridas de engodo. Sobre o banco da amurada, fechado em sua gaiola, o canarinho amarelo assiste cabisbaixo duas rolinhas comerem-lhe o alpiste, metendo as cabecinhas entre as grades. Ainda há pouco uma delas entalou-se na operação, e não houve nada a fazer senão sair do meu conforto e ir libertá-la com muito jeito, para que não quebrasse o pescocinho. Ela aquietou-se um minuto em minha mão antes de recobrar vôo e eu juro que me senti, com perdão da modéstia, um verdadeiro São Francisco de Assis.
No fundo do horizonte vejo as ilhas de Ipanema, uma das quais tem um nome que merece asterisco. Seis pisos abaixo de mim dorme ainda, a destilar no sono o Buchanan's da véspera, e certamente sonhando em bloco, esse poço de cultura e conhecimento que se chama Paulo Francis - conforme constatei pelo telefone com sua mucama.
Preferiria muito não estar fazendo nada, mas esses rapazes d'O PASQUIM, o Tarso especialmente, já se vêm tornando maçantes com a insistência para que eu contribua com o lirismo do meu verbo, para o aumento de tiragem deste jornaleco. Como voltei a ficar pobre, e estou precisando pagar minha conta no Antonio's, resolvi aceder. Pediu-me o Tarso, muito aflito, que apresentasse a entrevista de meu também pobre compadre Chico Buarque, vítima atual n. 1 dos chacais do jornalismo e da televisão. Vá lá que seja. O Tarso chegou mesmo a propor-me, de olho súplice, um aumento de salário avant-la-lettre, que eu naturalmente aceitei, considerado o fato de que minha atual situação financeira está mais para fezes que para mousse de chocolate.
Estou considerando seriamente a possibilidade de optar definitivamente pela pobreza, bem como, antecipando-me à era do matriarcado que se anuncia, e à qual o Tarso e eu damos o nosso completo apoio, trocar meu sobrenome pelo da mulher amada e passar a chamar-me, doravante, Vinícius Rezende de Deus, pois filho de Deus sempre fui, e dos mais aquinhoados por sua infinita bondade.
De fato, depois que voltei a ficar pobre, nunca a sua divina mão agiu com maior misericórdia. Por isso que estou, como diria o Caetaninho, sem lenço e sem documento, a divina providência soprou no ouvido dos amigos que me são mais caros que não me deixassem ficar sem teto e alimento, e assim é que essa querida Tônia Carrero, certamente uma das mulheres mais belas (por dentro e por fora) do século, abriu-me as portas do apartamentinho de seu filho Cecil Thiré, onde no momento assisto, e meu velho amigo Rubem Braga escancarou-me a passagem marítima de sua bela cobertura para esses dias de meditação e ócio não remunerado.
Não estou querendo insinuar nada, mas como o tradicional orgulho dos Moraes não me permite, na presente circunstância, aceitar donativos em dinheiro, permito-me sugerir que qualquer gesto de altruísmo seja manifestado em caixas, ou mesmo unidades, de uísque escocês, de preferência com rótulo de importação, e das marcas Buchanan's, Old Rarity, Black Label ou Chivas Regal, que poderão ser enviadas à redação deste, como diria a outro, hebdomadário.
É agora, dá-lhe, Chico!
VINICIUS DE MORAES
Muito bom!!