Fragmentos de textos e imagens catadas nesta tela, capturadas desta web, varridas de jornais, revistas, livros, sons, filtradas pelos olhos e ouvidos e escorrendo pelos dedos para serem derramadas sobre as teclas... e viverem eterna e instanta neamente num logradouro digital.
Desagua douro de pensa mentos.
sábado, janeiro 17, 2009
Palavras
"Sr. Ban disse que pessoas demais haviam morrido e que houvera sofrimento demais por parte de civis." Quase vale a pena repetir a frase, mas não vou faze-lo porque não acredito nisso. Demais? Na zona morta moral do coração humano, justificado perenialmente como "guerra" (evocando honra, triunfo, glória), não existe tal coisa: sofrimento demais. Não existe criança ensanguentada ou família estilhaçada ou suprimento de água contaminada que não possam ser descartados em nome de algum objetivo ou vantagem estratégica maiores, ou convertido em estrume que adube o próximo round de ódio, vingança e aquisição de armas.
Ban Ki-Moon, o secretário geral da ONU, prestes a embarcar numa turnê diplomática pela paz no Oriente Médio, referia-se, é claro, às condições infernais na Faixa de Gaza, socada por Israel com armamentos modernos e fúria de Antigo Testamento pelas últimas tres semanas. A vingança é minha, diz o govêrno de coalização. Perto de mil pessoas morreram. Muitos outros milhares foram feridas e deslocadas. Pessoas demais?
Não. Nem mesmo perto. Se houvessem morrido pessoas demais – se o inferno tivesse atingido a sua capacidade máxima, ou algum outro limite finalmente tivesse sido alcançado – algo mudaria. O empreendimento coletivo da violencia humana entraria em convulsões e começaria a bater pino. O medo, talvez, se transmutaria em coragem, a ira em perdão, o ódio em amor. Ou pelo menos começaríamos a olhar para o que estamos fazendo... como posso dizer isto? Com compaixão evoluída? Com uma compreensão, com uma determinação em sobreviver, que agora desdenhamos e ridicularizamos?
A invasão de Gaza por Israel é a guerra atual na boca de cena do mundo, colhendo manchetes, censura global, o apoio especial do Congresso Americano e, aparentemente, um sibilo audiovisual de Osama bin Laden, provavelmente do além túmulo.
Todas essas reações, me parece, conferem um despropositado status especial sobre a guerra, como se fosse isolada, sem um contexto mais profundo do que a da propaganda que a acompanha. Isto nos força a entender a guerra estritamente nos seus próprios termos – quem começou? quem é o bandido? que é inocente? – ao invés de como uma ocorrencia dentro de um sistema maior, disfuncional, tão fundo como a história humana e tão largo quanto as políticas planetárias.
Esta guerra, e os nove ou dez outros conflitos armados classificados oficialmente como guerras que acontecem agora mesmo – incluindo guerras no Congo (quatro milhões de mortos desde 1997), Darfur-Sudão (500 mil mortos desde 2003), Somalia (400 mil mortos desde 1988), Sr Lanka (80 mil mortos desde 1983), e, é claro, Iraque (possivelmente um milhão ou mais de mortos) e Afeganistão (35 mil mortos) – o que quer que sejam em seus próprios termos, são também sintomas de uma síndrome humana de auto-destruição.
Assim também os conflitos locais nas ruas das cidades e em outras selvas e que são pequenas demais para serem chamadas de guerras. Assim também nas consequencias horripilantes de conflitos que terminaram oficialmente, incluindo ambientes envenenados, a saude arruinada de participantes e espectadores, minas e bombas a explodirem, os traumas psicoespirituais que nunca desaparecem, e as afrontas que supuram de geração a geração.
O que os conecta de maneira imediata é a indústria de armamentos global, tão corrupta quanto invisível, que fatura um trilhão de dolares comercialmente por ano em todo o mundo, é crucial para todos as principais economias e portanto é servido, por conluio aberto ou silêncio discreto, por governos e pela mídia de massas.