Palavras
Penso em Hemingway, Bukowski, Dylan Thomas, penso na geração beatnik e naquele cenário clássico: uma máquina de escrever cercada por um cinzeiro entupido de baganas e por uma garrafa de uísque vazia. Uma espécie de altar às avessas, de onde brotavam palavras atormentadas escritas madrugada adentro. Hoje se escreve melhor? Melhor, pior, não é essa a questão. O problema é que transformamos literatura em profissão, com todos os encargos incluídos: pontualidade, disciplina, declaração de imposto.
Obedecemos prazos. Escrevemos de dia, em apartamentos vizinhos a shoppings.
Cercados pela família, que assiste à TV no aposento ao lado. Escrevemos concentrados no texto, mas interrompendo-o de vez em quando para consultar a entrada de emails.
Mergulhamos na ficção sem esquecer o horário marcado para o check-up de rotina.
Tentamos ser viscerais dentro dessa vidinha irritantemente normal.
Sinto uma certa nostalgia da época em que escrever era uma sina e não uma opção de carreira, quando as informações não estavam tão disponíveis e havia mais espaço para a imaginação. Quando não lidávamos com a assepsia dos computadores e nem com a falta de romantismo destes dias atuais. Quando o politicamente correto não havia sido inventado, quando era possível isolar-se, não ser encontrado, patrulha nenhuma à vista. Quando havia liberdade para viver uma vida que não fosse padrão, quando sobrava silêncio, ninguém recomendando dietas, exercícios, abstinências.
Houve quem entrasse rio adentro com pedras nos bolsos: suicidavam-se mais, os escritores.
Os escritores deste novo século já não se suicidam, a Sylvia Plath de hoje faz mamografia, a nova Ana Cristina Cesar faz pilates, o William Burroughs do século XXI precisa parar de beber por recomendação médica. Está proibido o desatino.
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