Ouço algumas canções consideradas das melhores de 2024 e lá está ele, o ontem, gritando ‘presente’
Julio Maria
O passado não é o refúgio dos desorientados nem a negação do presente, mas se tornou o próprio aqui e agora até mesmo de quem jura estar pisando lá na frente. Quando ouço algumas canções consideradas das melhores do ano de 2024, lá está ele, o ontem, novinho em folha, gritando “presente”. A música “Caju”, de Liniker, é o puro suco do R&B dos anos 1990; “Garota”, do grupo Os Garotin, é disco funk dos anos 1970 até a medula; “Só Fé”, de Grelo, com mais de 105 milhões de ouvintes no Spotify, usa a mesma base eletrônica das músicas tocadas nos bregas dos anos 1970 e 1980; e Amaro Freitas, grande pianista de jazz brasileiro, lançou o disco “Y’Y” provando a força daquilo que, em 2024, se tornou um outro jeito de nos referirmos ao tempo pretérito com algo mais do que saudade: ancestralidade.
A explosão das fronteiras que dividiam eras temporais até os anos 2000 pode ter se dado quando sentimos que não havia mais para onde ir. Não por falta de talento, mas de caminhos. Abrimos as barragens para que o passado inundasse as terras do presente de uma forma que tudo começasse de novo. Os modernistas haviam conseguido fazer isso uma vez falando em antropofagia, em 1922, e os tropicalistas, imitando os modernistas, uma segunda, em 1968. Desta vez, comemos não só o que vem de fora, como propôs Oswald de Andrade, como também tudo o que vem de trás do fundo do barro do chão, como disse Gil. E a música não é o único campo de transbordamento temporal. O longa brasileiro mais aclamado dos últimos anos, “Ainda estou aqui”, estava nas salas de cinema como um “filme de época” no instante em que seu enredo, do sumiço de um engenheiro desaparecido pelo sistema de assassinatos instalado pela ditadura nos anos 1960, voltava a ser presente com a descoberta de uma sangrenta trama golpista no Brasil. Antes, seria outro documento histórico de um período trevoso. Com a transposição temporal, encheu-se de urgência e de hojismo.
O fato é que passado virou coisa de velho, no pior sentido do termo. Mas há nisso um convite estimulante para 2025: assim como a hibridação das sexualidades (uma pena as racialidades terem de tomar o rumo contrário), não dividir mais o tempo em eras, destruindo sua linha histórica, parece ser o melhor caminho para enxergarmos o que é esse tempo. Meu filho, 23 anos, vai a raves que tocam fullon, uma divisão mais acelerada e psicodélica do trance, dos anos 1990. Ao mesmo tempo, acaba de descobrir o álbum de Miles Davis, “Kind of blue”, lançado em 1959. Para ele, o trance é antigo e Miles Davis, que produz um som onde ser humano algum parece ter chegado, o novo. Ele diz que quer começar a fazer suas próprias faixas e pensa em usar a voz de uma mulher que ouviu dia desses cantando uma música que o emocionou no Spotify. A mulher é Clare Torry e a música é “The great gig in the sky”, que o Pink Floyd lançou no disco “The dark side of the Moon”, de 1973. Feliz velho novo ano!
GLOBO
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