O terror na mem�ria de dois jovens

Ela n�o sabe, nem quer saber quantos viu matar ou matou. China Keitetsi foi recrutada pelas for�as rebeldes de Uganda aos 9 anos e, como toda crian�a-soldado, entrou numa espiral de viol�ncia que lhe custou a inf�ncia e a inoc�ncia. Hoje, aos 26 anos, vive na Dinamarca e vai ao psiquiatra "duas, tres �s vezes quatro vezes por semana".

Kassim Ouma foi sequestado aos 7 anos, na escola. Viveu o terrror da guerra ao lado de China. No in�cio, mal conseguia carregar a arma. Aos 24 anos, vive na Fl�rida e � campe�o de boxe.

As hist�rias de China e Kassim, entrevistados pelo Globo, s�o como as de muitas crian�as na �frica. Ela estava perdida no mato perto de casa, em 1984, quando foi levada por dois homens da tropa do ent�o jovem l�der rebelde do Exercito de Resistencia Nacional, Yoweri Museveni, que lutava para derrubar o ditador Milton Obote. Ele ergueu seu rosto e disse: "Olhe para mim, voc�, com esses olhos pequenos de chin�s". Perguntou seu nome. Como ela n�o entendeu, ordenou: "China, � direita, � esquerda"! Desde ent�o seu nome passou a ser China. O jovem l�der rebelde � hoje o presidente de Uganda.

Kassim foi um dia � escola, em 1985, e nunca mais voltou. Musevini encheu um caminh�o com crian�as e vedou seus olhos, para que n�o conhecessem o caminho. � medida que avan�ava para tomar a capital, recrutava crian�as, na falta de homens. Kassim enfrentou pela primeira vez as for�as do governo aos 8 anos, com a advert�ncia: "N�o desperdice uma bala"!

- Usei at� onde pude os sapatos da escola. Depois �amos recolhendo roupas e sapatos dos mortos - conta.

China acaba de publicar um livro em que descreve o horror a que s�o submetidas as crian�as-soldados. Os inimigos capturados por Musevini eram obrigados a cavar sua cova e depois executados. As crian�as ajudavam, dando pauladas na cabe�a.

- Quando voc� est� l�, como soldado, n�o pensa nisso. Olha para o lado e todo mundo est� fazendo a mesma coisa. Tudo se resume a dizer: "Sim, senhor, sim, senhor" - diz China.

Uganda, ex-col�nia inglesa, � um pa�s miser�vel. Ali se vive em m�dia at� os 43 anos. Desde a independencia, em 1962, os ugandenses vivem sob regimes violentos: Idi Amin (1971-79) teria matado 300 mil opositores. Milton Obote (1980-85) cem mil. O atual presidente, h� 16 anos no poder, segue esse caminho. Kassim viu crian�as-soldados serem executados por seu pr�prio grupo, quando feridas em combate. Para que n�o fossem capturadas por for�as do governo e revelassem segredos, eram executadas. Para n�o gastar muni��o, eram mortas com pancadas de fuzil na cabe�a.

Kasism e China viram muitos de seus colegas se suicidarem. Pela primeira vez em oito anos, encontraram-se h� duas semanas em Nova Iorque, numa confer�ncia da ONU. China diz que o encontro foi um de seus dias mais felizes. Kassim achava que ela estava morta.

Adotada por uma fam�lia, China trabalha numa creche. Sonha em voltar a Uganda e ver o filho que teve aos 14 anos com um militar. Mas se voltar, diz, "v�o me matar": Todas as pessoas mencionadas no livro est�o no poder. Sobre o futuro, diz, resignada:

- Que tipo de futuro posso esperar? Perdi minha inf�ncia. Toda vez que tomo banho, o passado � como minha pele. Sou uma pessoa diferente.

Kassim foi soldado at� 1998, quando, j� boxeador consagrado em Uganda, escapou durante uma visita da equipe nacional a Washington. Dormiu nas ruas at� ser recolhido por uma pessoa que o ajudou a entrar nas academias de boxe. Hoje vive na Fl�rida com a m�e. � campe�o no ringue e, como China, luta para esquecer o passado.

- Psiquiatra? N�o! Sou um boxeador. N�o sou forte o bastante para esquecer o que passei, mas sei lutar - diz.

- Debora Berlinck
(O Globo, 01/12/02)