Os quadrinhos são a vida de Lourenço Mutarelli, artista paulistano de 40 anos, e isso não é mera figura de linguagem. São deles que tira, quase que exclusivamente, o seu sustento desde 1991, quando lançou o seu primeiro álbum, “Transubstanciação”. E é dela de onde vem grande parte da matéria-prima de seu trabalho. Em seu último álbum, “Mundo Pet”, recém-lançado pela editora Devir, por exemplo, ele é o protagonista de “Estampa forjada”, e em “Dor ancestral”, ele relata os vários casos de esquizofrenia em sua família. Chamar sua obra de visceral não é mais um lugar-comum: Mutarelli “se oferece em sacrifício, abre as feridas”, como escreve sua mulher, Lucimar, no prefácio do livro.
Livro do artista será adaptado para o cinema
Em 2002, porém, ele encontrou novas formas de expressão, ao descobrir a literatura e ao ser descoberto pelo cinema. Naquele ano, ele lançou seu primeiro romance, “O cheiro do ralo” (Devir), e foi convidado pelo cineasta Heitor Dhalia para dar forma aos delírios da personagem-título de “Nina”, filme inspirado no romance “Crime e castigo”, de Dostoiévski, em cartaz no Rio. Nina (vivida por Guta Stresser), uma jovem atormentada, mantém um diário onde escreve e desenha suas inquietações. E, pela primeira vez, Mutarelli desenhou como se fosse outra pessoa.
— Fui dirigido pelo Heitor — conta. — Eu tinha uma edição ilustrada dos anos 50 do livro e a partir dela fizemos uma pesquisa do imaginário da personagem, até chegar ao meu traço. É engraçado, pois, quando trabalho com ilustrações, nunca sai o meu traço.
Dhalia é um diretor meticuloso e havia um storyboard detalhado a ser seguido. Ainda assim, Mutarelli conseguiu impor sua personalidade no filme, assumindo a de Nina:
— Incorporei a personagem. Além de desenhar, escrevi textos em seu diário. Não sei trabalhar sem mergulhar fundo. E o Heitor fez questão que eu estivesse no set durante as filmagens.
A parceria entre o diretor e Mutarelli apenas começou em “Nina”: o diretor vai adaptar “O cheiro do ralo” para o cinema.
— O Heitor já fez o primeiro tratamento com o Marçal Aquino (co-roteirista de “Nina”) e quer que eu trabalhe no novo tratamento, que ele vai fazer sozinho. Mas, na verdade, acho mais saudável ficar mais de fora. O Heitor tem uma visão do filme totalmente diferente da minha.
O cineasta também levou Mutarelli a escrever um novo romance, “Jesus Kid”, que sai ainda este mês, pela Devir, e que deveria ser um roteiro de cinema:
— “Jesus Kid” nasceu da idéia do Heitor para um filme de baixo orçamento, meio “Barton Fink”, meio John Fante, sobre um escritor atormentado trancado num hotel. É o meu primeiro livro com final feliz (risos) . Mas preferi escrever o romance para que dele o Heitor fizesse o que achasse melhor. Não gosto de escrever roteiros. A parte técnica é muito fria, didática, afasta-me das emoções.
E, embora seus desenhos tenham sido animados em “Nina”, Mutarelli também não se sente atraído pela animação:
— Prefiro os quadrinhos, pois neles são os leitores que evocam os movimentos. Cheguei a trabalhar nos estúdios do Maurício de Souza, mas só desenhava os cenários de fundo. Fui eu quem sugeriu que os desenhos fossem quase desanimados em “Nina”, como aquelas antigas animações da Marvel. Minha maior preocupação era com a unidade do filme.
O segundo romance do quadrinista, “O natimorto”, foi lançado esta semana, via editora DBA. E Mutarelli se prepara para estrear também no teatro. O artista foi convidado pela Cia. da Mentira, grupo originado do CPT de Antunes Filho, para escrever uma peça, “O que você foi quando era criança?”, que entra em cartaz em São Paulo no começo do ano que vem.
— Escrevi a peça quase em parceria. Eles pediram elementos que gostam em meu trabalho e eu sugeri um argumento. Eles improvisaram e eu escrevi um novo texto.
“Mundo Pet” é o primeiro trabalho colorido de Mutarelli, uma coletânea de histórias curtas criadas para o site de quadrinhos CyberComix. Nelas, o desenhista pôde exercitar seu humor e vários estilos: “Dói story”, por exemplo, foi feita totalmente em computador; e “Dossiê stick note”, em stick notes , esses bloquinhos amarelos de recados um pouco maiores que os post-its . É o nono álbum de Mutarelli — entre eles a obra-prima “A trilogia do detetive Diomedes”, formada por “O dobro de cinco”, “O rei do ponto” e “A soma de tudo”, que saiu em dois volumes — que agora trabalha em “A caixa de areia”. Mas ele deve se afastar cada vez mais dos quadrinhos:
— Quero fazer livros de gente grande, sem desenhos — brinca. — Quando escrevo um roteiro de quadrinhos, levo dez meses para desenhar cem páginas. A “Trilogia” me consumiu cinco anos de vida e pouca gente a entendeu. O livro, eu termino e pronto. É engraçado como tenho sido tratado como gente grande agora. Estão até me chamando de senhor!